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  • Foto do escritorFred Di Giacomo

O rock nacional nos fez ter vergonha da nossa cultura, dos nossos cabelos e dos nossos sotaques

Atualizado: 29 de mai. de 2019

(este texto foi originalmente postado no Medium, em 2016, e republicado no HuffPostBrasil, Glück Project, Geledés e Whiplash, entre outros.)


Phil Anselmo (ex-vocalista do Pantera) fez uma saudação nazi e chocou o mundo gerando uma série de discussões sobre o heavy metal ser ou não um gênero musical reaça. Me lembrou de uma entrevista do Seu Jorge que dizia que “rock não é um gênero pro negro”. Lembro que depois dessa entrevista, muitos brancos quiseram ensinar pro negro Seu Jorge como o rock havia sido criado por negros como Chuck Berry e Little Richard e eletrificado pelo negro Jimi Hendrix. Teve até gente que desenterrou a única grande banda de hardcore negra (Bad Brains) e os roqueiros do Living Colour para ensinar ao Seu Jorge o que ele seria incapaz de aprender com a experiência.


Eles estavam errados, claro, mas eu também estive a maior parte da minha vida.


Quando eu era um moleque rebelde que morava em uma vila pobre e me achava o lumpemproletariado em pessoa por ter menos grana que meus coleguinhas de escola, eu julgava que o rock era a música da rebeldia, a trilha sonora da revolução. Stones, Nirvana, Ramones, Rage Against The Machine… Quer coisa mais contestadora que o rock n’ roll? Do alto da sabedoria da minha adolescência, eu achava que quem ouvia pagode, axé, sertanejo, funk e outros gêneros populares era ignorante. Eu também decidira que a música clássica branca e o jazz negro, que papai ouvia em casa, eram um saco, música chatíssima. Portanto, além de libelo libertário, o rock era um símbolo de alta cultura, letras elaboradas e complexidade musical. Eu não tinha dúvidas que Max Cavalera devia ser um músico melhor que João Gilberto. E não sabia que traduzindo as letras do AC/DC ou do Elvis eu ficava com algo próximo de um funk carioca falando sobre rebolado, sapatos de azul camurça, “pegar garotas”, “comer garotas” e outras grandes questões filosóficas da humanidade. Também não fazia ideia que que as músicas dos Sex Pistols ou do Green Day eram muito mais fáceis de tocar que os solos do Chimbinha. Para mim, o rock era uma forma de religião e salvação. Especialmente o punk que era a coisa mais próxima do rap que um jovem branco poderia alcançar. O punk era o rock feito por suburbanos rebeldes, uma trilha sonora perfeita para minha vida de adolescente sofredor. Antes de descobrir o punk (e bandas que amo até hoje como Cólera, RDP, DK, Restos, Sin Dios, Crass, Clash, Menstruação Anarquika, entre outras) , eu até gostava de coisas que meus pais ouviam em casa como Caetano, Gal, Pena Branca & Xavantinho, Adoniran e Luiz Melodia. Depois, passei a achar toda a MPB cafona, atrasada, piegas e ultrapassada.

A crítica de rock da época, que eu lia avidamente, pregava a mesma coisa. O grande André Barcinski (gosto dos textos dele até hoje) não tinha saco para a “bunda-molice da MPB”, Alvaro Pereira Jr, que escrevia na Folhateen e hoje é editor do Fantástico, dizia que as ÚNICAS coisas boas já feitas no nosso país eram Racionais, Mutantes e Sepultura. Detonar Caetano Veloso era moda desde a chegada do rock dos anos 80 e continua sendo o mote principal do, hoje senhorzinho, Lobão. Caetano, Gil e cia eram “afeminados”, “atrasados”, tinham “sótaque” e faziam um som “pobre”. A bossa nova era chata. Eu gostava de Chico Science, mas meus amigos roqueiros o desprezavam. Bons para meus colegas juvenis eram Guns, Aerosmith, Metallica, Oasis, Pearl Jam, Offspring… No máximo o “pop rock nacional” (que muitos críticos brasileiros também desprezavam) de Legião, Raimundos, Ultraje a Rigor e Charlie Brown Jr.


Minha primeira resistência a esse pensamento foi o contato com o rap. Meus amigos roqueiros , mesmo os que moravam na quebrada, achavam Racionais uma merda. Eu achava foda. E ouvia, também, Planet Hemp, Sabotage, Thaíde e Dj Hum, Câmbio Negro e De Menos Crime. Vendo que tipo de colega ouvia cada coisa, rap era som de preto e rock de branco. Quando os Racionais sacanearam o Guns e o Barão em “Qual mentira vou acreditar” a coisa ficou mais explícita.

Quando entrei na faculdade, encontrei muita gente que também gostava de Chico Science. Lá eu não precisava ter vergonha dos discos de Mangue Beat. E as pessoas também ouviam coisas que meus pais gostavam: Tim Maia, Jorge Ben, Cartola, Gilberto Gil… Todos negros! E até Caetano Veloso era apreciado, mesmo com seu cabelo black power, seu sotaque baiano, seu jeito feminino, suas músicas “devagar”. De repente, percebi que até os anos 80, o pop nacional era cheio de mulheres (Rita Lee, Elis, Elza Soares), negros (além dos já citados, Jair Rodrigues, Simonal, Djavan, Milton Nascimento e muitos outros), andróginos (Caê, Gil, Secos & Molhados), pobres (Cartola, Luiz Melodia, João do Vale, Nelson Cavaquinho), nordestinos (Zé Ramalho, Elba, Novos Baianos, Fagner, Raul Seixas) e gays (Gal, Bethânia, Angela Rô Rô, Ney Matogrosso). Os músicos vinham da Bahia, Pernambuco, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais… e não só de São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio, como as bandas de “pop rock” oitentistas. Os ritmos não eram só rock (apesar de existir muito rock, funk e soul), mas, também, samba, baião e forró, etc. Tudo aquilo que eu havia aprendido que era cafona, brega, velho e ruim era, simplesmente, brasileiro. Eu aprendi que Djavan era uma piada, quando o cara estava gravando com Stevie Wonder.


Aprendi que a bossa nova era um lixo chato, quando foi a música brasileira com maior alcance internacional. Que Caetano era ultrapassado quando os hipsters gringos dos anos 2000 o regravaram e redescobriram. Já o rock nacional dos anos 80 passou anônimo para o mundo, apesar de ser vendido como revolucionário por aqui. E, sinceramente, de moderno, ele nem tinha tanto já que as referências estava muitos anos atrasadas (Barão Vermelho cultuava Stones, Ira o The Who, Lobão disse que qualquer um que tenha ouvido Led Zeppelin não podia aguentar bossa nova, etc).

Minha tese aqui é de como o rock nacional dos anos 80 deixou a música brasileira mais “branca” e “careta” (não que todo roqueiro é nazista, he, he, he). Acho que foi um processo que rolou na indústria cultural de uma forma geral, não só na música. Quem questionar esse ponto, por favor, liste10 frontmans de bandas nacionais de repercussão dos anos 80 que eram negros ou nordestinos. Escrevo isso como alguém que ainda se considera um “roqueiro”. Que ama bandas, discos e clipes de rock. E que sabe que nos anos 90 a coisa ficou mais diversificada por aqui. (Se você pegar os anos 80 inteiros só vai encontrar o Renato Rocha, baixista da Legião, e o Clemente, vocalista do Inocentes, de negros no rock. Nos 90, tem a galera da Nação Zumbi, Planet, Rappa, Gangrena Gasosa, Funk Fuckers, Devotos, entre outras.) Os ritmos nacionais foram reabilitados pela geração 90, mas não dá pra negar que, hoje, o “roqueiro true” é um tiozinho trancado em seu mundinho, acreditando que só aqueles 4 acordes (ou, ok, 367 acordes, no caso do Dream Theater) são bons. Se isso é ruim quando vemos a polêmica em volta do vocalista do Pantera, no caso do Brasil é patético. Estamos idolatrando pastiche ruim de coisas que foram relevantes lá fora anos atrás.Se eu tivesse que escolher entre NXZero e Tim Maia, Tihuana e Racionais ou Jorge Ben e Capital Inicial, nem preciso dizer de que lado ficaria, né?

Amo meus discos, amo o punk rock, faço meu filho dormir ouvindo Sepultura, mas não posso negar que Seu Jorge estava certo e que os críticos de Phil Anselmo estão certos. O rock se tornou um senhor branco, arrogante, machista,conservador e bunda mole. E, no Brasil, a partir dos anos 80, ele ajudou a nos fazer ter vergonha da nossa cultura, dos nossos cabelos e dos nossos sotaques. Rock é legal, mas não é a música das “elites intelectuais do mundo” comogostaríamos de acreditar. E além do seu cercadinho de solos distorcidos e roupas pretas, existe uma tonelada de cultura e diversidade para ser escutada e descoberta.



P.S.1: Vejo muitas pessoas comentando neste texto dizendo que música é gosto pessoal, que o que importa são os indivíduos, que eu sou uma exceção, etc. Mas, gente, vocês não estão sendo ingênuos? Música é paixão (já percebi pelas xingadas que tomei, hehehe), mas é cultura e é indústria. A cultura nacional(música, cinema, literatura, culinária, moda) é fundamental na criação da identidade de um povo. Ela ajuda a definir sua identidade, influencia sua autoestima e seu espaço nos meios de comunicação. Ninguém é uma ilha. Nossos heróis da juventude são atores, cantores, atletas. Por isso é importante que esses “heróis” sejam de várias cores, regiões, gêneros, etc. Para que todos possam se identificar. Exemplo pessoal: não é à toda que eu assino meus textos com meu nome do meio italiano e não com meu sobrenome paterno que é baiano. Não é à toa que deixei meu cabelo ˜não liso˜ curto toda minha juventude.Você é influenciado pelo que seus amigos e família escutam e pelo que eles acham legal/bonito. Todo mundo quer pertencer a um grupo, ser amado e aceito.Nós somos influenciados culturalmente a termos preconceitos com nossas próprias raízes. Você ouve e descobre a música que as rádios tocam, os clipes que a televisão passa ou as bandas que os jornais, revistas, fanzines ou sites underground recomendam. Existem músicas que estão “na moda” e que “não estão”. Quando esses meios só batem na mesma tecla, fica difícil ter uma gosto tão “pessoal” como julgamos. E cultura é uma coisa séria no mundo. Existe guerra cultural, um país procura influenciar o outro, países que têm pretensões expansionistas sempre procuram endeusar uma cultura própria, etc.Grande parte da briguinha de direita e esquerda hoje fala sobre a tese gramsciana de dominação ideológica dos meios de comunicação e de entretenimento. O fato de ter uma mudança de mercado nos anos 80 no Brasil não foi só “gosto pessoal”. A indústria mudou, o Brasil mudou, a classe média mudou. E hoje mudou de novo. As coisas não são tão simples como gostaríamos.

P.S.2: Amiguinho, antes de deixar seu comentário falando que isso só aconteceu com o autor deste texto, que os exemplos são absurdos, que eu só conheço Offspring e Legião Urbana — e por isso sou uma besta – leiam os links abaixo, pensem um pouco e respirem:

P.S.3: Gente, sem paranoia, não apaguei nenhum comentário e nem vou apagar. Acho que vocês estão levando esse debate mais a sério que eu, não tenho nenhum interesse em ficar moderando a caralhada de comentários que esse posts gerou. O bagulho teve mais de 100 mil views em um dia, eu nem esperava isso. Tenho que trampar e cuidar do meu moleque, não tenho tempo pra responder tudo ou apagar xingamento. O que acontece é que o Medium não deixa os comentários mais recentes embaixo do texto, você tem que ir clicando lá no botãozinho de “ver mais” até achar seu comentário. (Olha só, tô explicando como achar os xingamentos, heheh) As regras são do Medium, não minhas. Falous!

P.S. 4: Vários ˜roqueiros˜ me pediram o “currículo” para escrever sobre o assunto, acho meio bobo essa coisa de “quem é esse ser que nunca ouviu nada e quer falar algo”, mas, ok, aí vai, é até divertido lembrar essa história toda:


Fred Di Giacomo é escritor e jornalista multimídia. Começou sua carreiraeditando o fanzine Afrociberdeli@, aos 13 anos de idade, inspirado em bandas como Chico Science e Nação Zumbi, Planet Hemp, Racionais, Karnak, mundo livre s/a e Câmbio Negro. Gostava de literatura marginal, rap, rock nacional e música brasileira (todos exemplos citados no texto). Descobriu o punk rock (Devotos, RDP, Cólera, Restos de Nada, Restos, Menstruação Anarquika, Dead Kennedys, Crass, Sin Dios, Mukeka Di Rato, Invasores de Cérebro, Replicantes, Fugazi, Strike Anywhere, Ska-P, Inocentes, Street Bulldogs, entre dezenas de outro) pouco depois e passou a ajudar a criar a cena de sua pequena cidade, Penápolis, organizando festivais com bandas de metal, punk e rock de toda região (Birigui, Rio Preto, Araçatuba, Auriflama) tocando baixo em grupos como Praga de Mãe e Andarilhos, editando fanzines (Ira! e Kaos) e apresentando o único programa de rock da cidade. Nessa época, tocou em todos buracos possíveis rodando as várias vilas da periferia da cidade: na rua, em escolas públicas e particulares, em centro culturais anarcopunks, em festivais e na casa de amigos. Além de punk, gostava de metal, especialmente bandas ligadas ao thrash e crossover (como Sepultura, Krisiun, Brujeria, Slayer e Korzus). Aprovado em jornalismo na Unesp, mudou para Bauru onde começou a misturar punk com música popular (Roberto Carlos, Reginaldo Rossi, Lindomar Castilho) inspirado no punk brega de Wander Wildner e passou a ouvir outros estilos (indie rock, mais música brasileira, rap, funk, soul). Nessa época, entrevistou Arnaldo Baptista (Mutantes), Nação Zumbi, João Gordo,Dead Fish, Garotos Podres, Nelson Triunfo, Forgotten Boys e Wander Wildner para o site do zine Kaos! Migrou para São Paulo para trabalhar como jornalista nos sites das revistas Mundo Estranho e Bizz (principal revista de música no Brasil dos anos 80 e 90, focada em rock). Foi editor de diversos sites como Superinteressante e Guia do Estudante, onde ganhou prêmios internacionais por seus trabalhos com infográficos e newsgames (jogos jornalísticos), que viraram artigo no site do Niemans Lab de Harvard. Em SP, tocou na banda Milhouse (que acrescentava ao punk brega influências de Beatles e Jorge Ben) até 2011 rodando o interior de São Paulo (Ribeirão Preto, Bauru, Penápolis) e capital onde se apresentou em lugares como Espaço Impróprio, Outs, Hangar 110 e diversos festivais do site Zona Punk; além de botecos, festas de estudantes e festivais independentes. Em 2013, pediu demissão do seu emprego e criou o Glück Project — uma investigação sobre a felicidade que questiona a forma como vivemos em uma sociedade consumista e infeliz. Sempre escreveu ficção, contos e poesias publicados em zines, sites independentes e, agora, livros. Acredita que livros salvam vidas e vive de escrever. É autor de “Canções para ninar adultos” (lançado, em 2012, pela Editora Patuá uma das mais ativas editoras independentes do país) e “Haicais Animais”. Hoje, tem uma banda que mistura tudo isso que foi citado (música brasileira, punk, samba, rap, bossa, indie, folk e o que vier). Tem uma caralhada de ficção postada aqui no Medium.

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