originalmente publicado na revista Dante Cultural, edição 34, novembro de 2016

Non avean penne, ma di vispistrello
era lor modo; e quelle svolazzava,
sì che tre venti si movean da ello,
Dante Alighieri, Inferno, Canto XXXIV
É necessário um sonar no ouvido para captar com clareza o agudo cantar que os morcegos usam para se localizar. Vó Rita sabia falar com os morcegos. Essa é das poucas lembranças que que levo dela. ***
Rita Montanari, nascida na região do Abruzzo, na Itália foi minha avó materna. Era uma mulher seca e triste que passava as noites olhando para as copas das árvores do seu quintal, em Penápolis, cidade localizada no noroeste paulista e fundada em 1908. Minha avó migrou, inicialmente, para a rica Jaú e lá conheceu meu vô Enzo Sbrocco que tinha temperamento oposto ao da esposa. Alegre, adorava cantarolar “Mano a Mano” e outros tangos de Gardel, enquanto ensaiava alguns passos de dança pelo piso de madeira encerada do casarão onde moravam, na Avenida Bento da Cruz. No barracão que se escondia entre folhas de bananeiras e mangueiras, no fundo do quintal, ele construía barcos e revelava fotografias que tirava com uma Rolleiflex. Plantava lá, também, pimentinhas dedo de moça e tomatinhos que adorava petiscar com azeite e alho. Comer e cozinhar eram prazeres que cultivava com o tempero da paciência - suas especialidades eram o espaguete com linguiça calabresa e a porchetta romana.
Quando vó Rita morreu, ficaram seus diários aos quais me encarregaram de queimar. Peço perdão a ela pelas transcrições dos trechos abaixo, mas acho que tais manuscritos podem despertar atenção em mais leitores do que meus textos prévios postados nesta nobre revista e em alguns jornais penapolenses esquecidos pelo tempo.
A tradução livre do italiano é minha. Desculpo-me por possíveis erros. *** “29 de agosto de 1918,
Não foi sem lágrimas que Enzo me convenceu a migrar para este sertão, boca do inferno perdida em meio à mata. Não existe nada de civilizado ao norte de Bauru e aqui a natureza é selvagem e deforme, não lembrando em absoluto a poesia do Abruzzo. O calor seco de Pennapolis me sufoca. O pedreiro Santo Aleixo contou-me que houve um tiroteio no convento dos Capuchinhos. (...)” “30 de setembro de 1918,
(...) Insisto para que tenhamos um filho. Tenho 25 anos. Uma velha já e ainda não engravidei. Enzo diz que é preciso reunir mais dinheiro, se estruturar. Quer me levar para Itália, quando a guerra acabar. Enzo é um sonhador, um fraco. Se depender dele nunca teremos um filho. E que é da mulher que não se realiza na multiplicação da vida? (...)
“25 de dezembro de 1918, Aniversário do menino Jesus e eu não consigo me sentir feliz. Tempo de nascimento e esperança. Passei o dia deitada, enquanto Enzo bebia com o Soliani do cinema. Querem fazer sociedade. Eu só quero um filho. Pensei, hoje, que a vida solitária não vale a pena. Temi morrer e ir para o inferno. O poeta diz que os blasfemadores acabam no terceiro círculo, num deserto de areia quente onde chovem chamas de fogo... Já não estarei neste inferno?” “07 de janeiro de 1919,
Passei o dia da cama. Como se uma âncora de chumbo esmagasse o meu peito. “
“12 de janeiro de 1919,
Tivemos uma discussão seríssima, mas com final feliz. (...) Sim, sim, sim, Enzo quer me dar um filho!!!! Já começamos a (...)”
“24 de março de 1919,
Boba que sou recebi o atraso da regra com misto de felicidade e medo. Medo por quê? Não era esse filho meu desejo desde pequenina? Ninava minhas bonecas de pano com uma intensidade que só quem nasceu para ser mãe pode possuir. Como sou boba. Enzo há de se alegrar quando ver a cara do (...)”
“03 de agosto de 1919,
Imaginei que Enzo fosse se felicitar mais com minha gravidez. Tenho me sentido muito sozinha, apesar de levar Giovanni na barriga. Noite passada tive um sonho confuso (...)”
“11 outubro de 1919. A criança veio antes do esperado. Criança? (...)”
“23 de dezembro de 1919
“Enzo bebe muito, não consigo amamentar o (…), mal posso olhar para ele. Digo às pessoas que nasceu doente. É um castigo, há de ser. Nunca dorme de noite, mas passa o dia com seus olhões abertos. Emite choros e grunhidos agudos por toda madrugada. Não quer saber do meu leite, mas tira sangue dos meus seios. Um monstro! Alimento-o com frutas amassadas e lágrimas. (...).” “02 de janeiro de 1920 Suas fezes espalham-se pela casa. Grita a noite toda ainda. Enzo não aguenta mais e me culpa. Nunca estivémos tão distantes. Essa manhã, enquanto dormia, todo enrolado, pensei em sufocá-lo lentamente. Mas... Devo amá-lo não devo? (...)”
“29 de fevereiro de 1920
Cheguei em casa exaurida. No entanto, seu ninho estava vazio. Uma lacuna abriu-se imediatamente em minh’alma. Achei que Enzo havia feito uma loucura. Onde estava ele, onde estava Giovanni? Sua resposta foi (...): ‘Tive sonhos intranquilos a noite toda, Rita, quando despertei vi a janela aberta ao lado de seu leito. Nosso filho se foi. (...)
Voando.’ ” Fred Di Giacomo é escritor e jornalista multimídia e acaba de lançar seu primeiro livro de poemas “Guia poético e prático para sobreviver ao século XXI” (Ed. Patuá). Já publicou dois livros infantis, escreveu games e seu contos estão reunidos em “Canções para ninar adultos” (Patuá, 2012) Ilustrações: Adriano de Lucca
Comments